Dep. Henrique Fontana
O Partido dos Trabalhadores nasceu com uma vocação democratizadora. Por um motivo simples: para se realizarem, os interesses dos trabalhadores, que são a ampla maioria da população, precisam de uma institucionalidade baseada nos valores da liberdade e da igualdade de oportunidades para intervir no cenário político. Sem democracia, os trabalhadores estão fadados a assistirem de longe o acordo político entre as elites.
A democracia é um sistema em que cada pessoa tem o direito de dar opinião e se posicionar sobre os temas públicos e buscar, através de mediações institucionais, realizar na prática suas opiniões e defender os seus posicionamentos. Existem formas diferentes de dar vazão a esses interesses e posicionamentos - como sindicatos, associações e mesmo movimentos de ação direta -, mas a forma mais universal, aquela que possui a maior abrangência para racionalizar os interesses de determinadas parcelas da população ou, porque não dizer, de determinadas classes sociais, é o partido, uma instituição que serve para organizar as opiniões e os interesses dos vários setores em uma determinada organização social.
No Brasil, conquistamos muitas coisas nos últimos 30 anos. Mas ainda é preciso caminhar para concretizar essa visão de democracia. Assim como é fácil perceber que os próprios valores democráticos ainda não se enraizaram suficientemente na sociedade brasileira a ponto de orientar toda a estrutura do Estado e da própria sociedade. A dificuldade em tratarmos da questão da democratização da comunicação, por exemplo, é reveladora de que ainda existem setores sociais e econômicos que resistem à ideia de uma democracia plena e abrangente.
Para o PT, portanto, a reforma do atual sistema político se enquadra no rol das lutas democráticas. O financiamento público, peça fundamental da reforma, realiza a ideia da igualdade de oportunidades para os vários matizes do pensamento se apresentarem como projeto político. O voto em lista, mesmo com as mediações necessárias com a atual maioria política no parlamento, é a realização da ideia de que os partidos são os instrumentos institucionais que precisamos reforçar para a produção da mediação entre a vontade das várias partes da sociedade com a universalidade do Estado. E a consolidação do sistema proporcional é a realização do espaço plural que está na origem da ideia democrática.
Encarada desta forma, a reforma política é, provavelmente, a mais importante das reformas modernizadoras da sociedade brasileira e se constitui em uma das principais bandeiras do PT, porque com a proposta que estamos sustentando, consolidaremos um tipo de sistema político mais capaz de ampliar a consciência política da população e agregá-la aos processos decisórios. Para o PT, a reforma política é também uma reforma das práticas políticas, algo que originou a nossa própria existência como partido.
Agenda para uma reforma política possível e necessária
O debate sobre a necessidade de uma reforma política está na agenda pública de nosso país desde pelo menos a promulgação da nova Constituição, em 1988. Até agora, entretanto, não foi possível constituir uma maioria sólida capaz de efetivar mudanças no regramento eleitoral brasileiro, a não ser aquelas impostas por interesses muito conjunturais, como a extensão do mandato presidencial, durante o governo Sarney, e a introdução da reeleição através de uma emenda constitucional, aprovada de maneira muito questionável, durante o primeiro governo de FHC.
Uma das explicações para a falta de resolubilidade deste tema no âmbito do Congresso Nacional está relacionada com o paradoxo identificado por Renato Janine Ribeiro em artigo sobre o tema do financiamento das campanhas. Segundo o filósofo, ‘o paradoxo do presente debate brasileiro é que a reforma política, aqui, não é uma questão política’. O articulista explica que no Brasil o tema nem ganhou relevância na opinião pública e nem está relacionado com as divisões próprias dos partidos políticos.
É verdade que desde a manifestação de Ribeiro, o contexto desta discussão mudou e a ideia da reforma política (que talvez devêssemos chamar de reforma eleitoral) ganhou adeptos entre os partidos e entre representações importantes da opinião pública. Se isso é resultado de uma crescente hegemonia do PT e da centro-esquerda sobre os destinos do país, veremos no decorrer do processo. O importante é que é preciso politizar este debate, dando-lhe solidez político-ideológica e ampliando o espaço público da discussão. Só assim alguma reforma poderá, efetivamente, acontecer.
Digo alguma reforma, porque está claro, creio, que não estamos em busca de uma reforma que perenize o sistema político, que instaure um sistema perfeito, imutável e eterno. Queremos uma reforma que incida sobre os principais problemas do sistema político brasileiro, melhorando os instrumentos da representação política, consolidando e ampliando o processo democrático e auxiliando para que a população alcance níveis mais elevados de maturidade política.
Esse pressuposto, imagino, deve orientar a nossa tática política para a definição de alguns pontos específicos que, alterados, contribuirão para um sistema político mais moderno, representativo e democrático. Por esta razão, estamos buscando condições de maioria que nos permitam alcançar o ponto máximo de proximidade com este nosso projeto de reforma. Digo isso, porque a conjuntura e a correlação de forças no Congresso impõem às forças progressistas uma conduta de negociação para chegar a um sistema político melhor que o atual, mas não o que consideramos ideal.
Um sistema político democrático e republicano
O sistema político que queremos construir deve, basicamente, afirmar a ideia da república e aprofundar a democracia, através da qualificação da relação entre representantes e representados. Nesse sentido, estabelecemos como pontos focais de nossa proposta: a) financiamento público exclusivo das campanhas; b) voto proporcional misto; c) fidelidade partidária; d) fim das coligações proporcionais e e) ampliação da participação direta da população na política. Passo, agora, a argumentar a favor de cada um desses pontos, que em meu entender, compõem uma agenda de reformas possíveis no atual contexto político brasileiro.
O financiamento público exclusivo das campanhas é uma necessidade fundamental para democratizar o nosso processo político. O modelo do financiamento privado origina distorções importantes na representação política, facilita a ação do poder econômico, incentivando relações de interdependência e, muitas vezes, abre caminhos para a corrupção, além de criar injustiças em um processo de competição que deveria ser baseado em regras equânimes.
O financiamento público exclusivo, portanto, tornará mais equilibrado o jogo eleitoral, estabelecendo condições mínimas de participação e um teto de recursos que será investido nos partidos com base na sua real representação. Um dos efeitos secundários, mas importante, disso será o barateamento das campanhas eleitorais, já que as campanhas serão regradas financeiramente por tetos que diminuirão profundamente a competição de caráter puramente financeiro.
Obviamente, o funcionamento desse sistema de financiamento exigirá mecanismos sólidos de transparência e fiscalização e penalidades rigorosas para quem burlar a legislação, com captação ilegal de recursos públicos ou privados. O fato é que teríamos uma campanha eleitoral mais igualitária, mais barata e que tenderia a valorizar os aspectos racionais da disputa, ao invés de investir em técnicas caríssimas de marketing eleitoral.
Voto proporcional misto para fortalecer os partidos
Dois votos: um na lista e outro nominal
A ideia do voto em lista coloca em discussão, na verdade, dois temas que estão relacionados: o da oposição entre voto proporcional e voto majoritário e a questão da lista pré-ordenada pelos partidos ou da lista aberta. Existem experiências de democracias modernas que funcionam com os dois sistemas. No Brasil o voto é proporcional e uninominal, quer dizer, o eleitor vota em um candidato que compõe uma lista apresentada pelo partido e o seu voto conta para a composição do espaço que o partido vai conquistar com a soma total dos seus votos.
Esse sistema é positivo por um lado, já que garante a representação plural de todos os pensamentos políticos no parlamento, através do critério de composição proporcional da representação, e negativo por outro, já que o voto uninominal personaliza a escolha e, portanto, não ajuda a consolidar a relação do eleitor com o partido, que é o instrumento próprio de mediação entre o cidadão e o Estado.
A proporcionalidade na eleição dos parlamentares é um elemento chave para a democracia. O voto distrital deixa, muitas vezes, fora da representação a maioria da população. Por exemplo, neste sistema, se concorrem três candidatos, cada um representando um partido, o candidato A pode fazer 35%, o B, 33% e o C, 32%. Neste caso, 65% da população não estariam representados no parlamento, pois em cada distrito apenas são considerados os votos do candidato mais votado. Os demais votos seriam perdidos. Um exemplo desta distorção causada pelo voto majoritário é o sistema inglês, onde o Partido Liberal, nos últimos 50 anos, tem recebido entorno de 15% a 25% dos votos e oscila entre 4% e 5% das cadeiras do parlamento.
Além disso, com a instituição deste sistema distrital, o Brasil seria retalhado em 513 pedaços e cada um deles elegeria um representante. Isto geraria uma tendência forte de ação dos parlamentares muito focada nas questões dos distritos e não nos grandes temas de interesse nacional. É o fenômeno apelidado de paroquialização da política.
Mas se é verdade que o sistema proporcional é vital para garantir uma democracia plural, o voto em lista é decisivo para fortalecer os partidos e construir uma nova política no Brasil, baseada na disputa de ideias e fundada na adesão a programas políticos. Hoje, mais de 80% dos eleitores esquecem em quem votaram poucos meses após o pleito eleitoral. Ocorre que o sistema de votos uninominal engendra uma relação pouco orgânica entre o eleitor e o candidato, o que gera uma verdadeira alienação do eleitor. Como não sabe em quem depositou o seu voto, não saberá de quem cobrar a representação. A própria ideia da representação fica diluída em uma relação personalista e individual, que não permite a constituição de formas de incidência do cidadão na sua própria representação. O efeito secundário disso é um afastamento do eleitor do próprio poder Legislativo, já que ele não se reconhece ali, enxergando os políticos longe dos interesses reais da população.
A lista que sugerimos deverá ser constituída com o voto secreto de todos os filiados. Este mecanismo irá reforçar as estruturas partidárias, agregando filiados interessados em participar da composição das listas eleitorais e permitindo aos eleitores uma clara diferenciação programática para o seu voto.
Como relator da Comissão Especial da Reforma Política na Câmara dos Deputados, estou apresentando uma alternativa que, além do voto no partido, mantém a possibilidade do eleitor escolher o parlamentar de sua preferência e que aumenta a possibilidade de construir maioria para aprovação no Congresso. Trata-se de um sistema que garante ao eleitor um voto duplo, primeiro escolhendo o partido de sua preferência, votando na lista, e a seguir votando no candidato preferido. Se um partido eleger oito deputados, por exemplo, metade serão os quatro primeiros da lista e os outros quatro serão os que receberem mais votos na votação nominal.
Fidelidade partidária e fim das coligações proporcionais
Estes dois itens, como fica evidente, tratam-se de duas regras que estão totalmente relacionadas com a adoção do voto em lista e proporcional. Senão vejamos:
A ideia da proporcionalidade é a de garantir a representação real de todas as forças políticas da sociedade em um pleito eleitoral. Quando acontece coligação entre partidos no âmbito proporcional, ou seja, na eleição dos parlamentares, essa representação fica enviesada criando problemas para a própria democracia. Muitas vezes, candidatos com características político ideológicas muito diferentes se elegem por conta da performance de outros candidatos individualmente. Para garantir a manutenção e a possibilidade de crescimento dos partidos menores com perfil programático definido, defendo a viabilidade de formação de federações partidárias com prazo de funcionamento mínimo de três anos.
Já a fidelidade partidária é um princípio fundamental da regra democrática, já que o partido, neste novo contexto, seria o depositário da representação e não o parlamentar individualmente. Esse debate é complexo e vem de longe e está relacionado com o princípio da representação. Está em jogo nesta regra a ideia de uma delegação ampla e aberta ou de uma delegação específica, que permite um controle rigoroso dos eleitores, se não de todos, pelo menos de uma gama de eleitores politizados, que participaram internamente da definição da lista.
O princípio da fidelidade partidária fortalece o partido como o instrumento de mediação com a política e com o Estado e, ao mesmo tempo, garante aos eleitores mecanismos de controle da delegação do mandatário. Ao aproximar o eleitor do eleito, através da mediação do partido, cujo objetivo é sempre ampliar a sua representação e os seus filiados, a obrigação da fidelidade, estabelece vínculos orgânicos entre os deputados e os eleitores, sejam eles filiados ao partido ou não.
Participação direta da população
Por último, mas não menos importante, vou defender no relatório a ampliação da participação direta da população na política brasileira. Devemos permitir, por exemplo, que essa participação se dê não só por meio da coleta física de assinaturas nas ruas apoiando uma proposta, mas também através da apresentação de projetos de lei e emendas constitucionais de iniciativa popular com apoio das redes sociais e da internet.
Por conta do calendário, as alterações no sistema eleitoral devem passar a valer nas eleições de 2014, pois queremos que a população compreenda o novo sistema e que os partidos e a sociedade possam se preparar com tempo suficiente para isso.